Você certamente já ouviu falar que 70% dos alimentos na mesa do brasileiro vem da agricultura familiar, certo?
Um percentual impactante – mas está correto?
E de onde veio?
Vem comigo que descobri algo interessante:
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1. Para começar, algo que chama a atenção é o uso dos mesmos termos (principalmente o “mesa dos brasileiros”) em quase todos os artigos que fazem menção a isto – o que, para mim, deixa claro que está assim na fonte original.
Mas qual seria a fonte citada?
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2. Frequentemente cita-se o IBGE, ou, quando mais específico, o Censo Agropecuário de 2006 (o primeiro volume, referente especificamente à agricultura familiar) – que seria publicado apenas em 2009.
3. Aqui vale um parênteses: naquele ano de 2006, a agricultura familiar foi formalizada através da Lei 11.326 e ficou definido que engloba propriedades rurais com área de até 4 módulos fiscais (que são variáveis de acordo com o município).
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4. Em 2012, saíram os dados completos. E o que constava no Censo Agropecuário de 2006? A produção em valor destes estabelecimentos. Notem a participação bastante alta na horticultura (mas não 70%).
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5. “Ah, Frankito, mas você está desconsiderando que as propriedades não-familiares exportam muito.”
SIM – porque isto não consta no Censo. Não trata de exportação, importação e consumo interno aparente, que seria indispensável para calcular a composição da mesa.
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6. Neste ponto da investigação, já ficou claro: o número não estava no Censo Agropecuário. Veio de algum outro lugar.
A primeira menção é esta do site do Instituto Lula de mai/08 (no cache do Google).
Ou seja: tudo leva a crer que os 70% surgiram no início daquele ano.
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7. A segunda menção online é num pequeno site do Mato Grosso em 21/jul/08.
Notem que o palavreado já está lá e – FUNDAMENTAL – de onde veio: o Ministério de Desenvolvimento Agrário (sem menção ao IBGE – o que faz sentido).
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8. Achei esta entrevista de 2009 com um estudante não-identificado da UFRJ no qual ele menciona exatamente os 70% na mesa do brasileiro – sinal que aquela frase já tinha circulado bastante (não sei se na mídia, mas ao menos no meio acadêmico).
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passapalavra.info/2009/03/1770/
9. Em agosto de 2010, foi publicado um artigo na revista Conjuntura Econômica do IBRE/FGV que não mencionava os alegados 70% da agricultura familiar, mas mostra a sua participação em valor (de modo geral, bem mais baixa).
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periodicos.fgv.br/rce/issue/view…
10. Em 2011, a edição 66 (jul/11) da Revista Desafios do Desenvolvimento, do IPEA, cita os 70%, mas de outra fonte: Bernardo Mançano, da UNESP. Mas como ele poderia ser a fonte primária, se lá em 2008 já se citava o Ministério de Desenvolvimento Agrário? Podemos descartar.
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ipea.gov.br/desafios/index…
11. Em 2014, Rodolfo Hoffmann publicou uma nota técnica na revista Segurança Alimentar e Nutricional, no qual mostrava que, a despeito da agricultura familiar ser um importante, não poderia compor 70% em valor e que este percentual seria absurdamente difícil de ser calculado.
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periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/…
12. O estudo de Marco Mitidiero de 2017 é muito citado por aqueles que defendem que a afirmação tem embasamento formal, pois contém metodologia de cálculo para chegar aos 70%.
Mas tem um problema: ele desconsidera o critério do IBGE (e da própria lei) para agricultura familiar. Ou seja, aí estamos comparando bananas com laranjas.
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revista.fct.unesp.br/index.php/pega…
13. Em dezembro do ano passado, José Graziano, ex-ministro do Fome Zero, revelou que os 70% foram uma invenção feita naqueles anos na falta de números precisos.
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instagram.com/reel/DDpzTeIth…
14. Achei estranho porque em 2008, quando o número aparece alguns números do Censo 2006 já estavam disponíveis, então o timing parece não bater com a fala do Graziano (lembrando que ele foi ministro só até 2004). Foi aí que encontrei a fala que definitivamente resolveu o mistério:
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15. Guilherme Cassel era o Ministro do Desenvolvimento Agrário na época da divulgação dos dados. Em entrevista de 2023, ele disse:
“Esse número só ganhou a repercussão que ganhou porque ele bate na realidade fática, bate com a sensibilidade das pessoas comuns”.
Percebam o “bate com a sensibilidade”. 😉
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16. Na matéria, não consta a transcrição da entrevista, mas consta que, segundo ele, os 70% seriam uma média geral dos alimentos (calorias? peso? valor? in natura?)
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ojoioeotrigo.com.br/2023/06/saiba-…
17. Assim, o “70% dos alimentos na mesa dos brasileiros vem da agricultura familiar” veio de uma declaração informal do MDA (possivelmente no início de 2008) baseado numa estimativa interna, não num cálculo do IBGE.
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18. A escolha do palavreado foi tão certeira que entrou no imaginário coletivo imediatamente (não consigo imaginar que não tenha o dedo do marketeiro João Santana aí) – é sonora e fácil de lembrar. Como diz o ex-ministro, um slogan.
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19. E para quem não acredita que os 70% nunca existiram formalmente, aqui está um longo documento de 2009 do próprio MDA analisando a agricultura familiar nos resultados do Censo Agropecuário e não há uma única menção aos 70%.
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gov.br/mda/pt-br/acer…
20. Resumindo:
– citar o IBGE como fonte está incorreto
– citar algum acadêmico como fonte está incorreto (é fonte secundária)
– citar MDA como fonte está correto, mas…
– formalmente, o MDA não publicou nem disponibilizou o cálculo, portanto…
– é anedótico, sem peso suficiente para ser citado em estudos acadêmicos
Lição: fact-checking de declarações informais de políticos é fundamental. Nunca tomem a palavra como garantia.
FIM
Este fio surgiu de uma troca de mensagens via Whatsapp com o @andradedanielbr há um ano, quando eu ainda não o conhecia pessoalmente. Ambos não nos conformávamos com o fato de um dado tão impactante não ter uma fonte clara.
@andradedanielbr Adendo: IA não checa qualidade das fontes – e os supostos dados do IBGE estão linkados a um site qualquer.
Nunca confiem cegamente nas respostas da IA. Tem que checar.
Adendo 2: existe uma fonte que precede tudo isto – um artigo de 2002 no site Comciencia que diz que, segundo a Secretaria de Agricultura Familiar, ela seria responsável por 60% dos alimentos consumidor no Brasil. Talvez seja disto que José Graziano falava (encaixa na linha do tempo). O interessante é que fala em 60%, mas sem especificar o que isto representa (peso? calorias?) já que, em seguida, fala que, em valor bruto, eram 37,8%. De qualquer maneira, naquela época o critério de agricultura familiar era outro (mais amplo) que o de 2006.
Frankito, o site tem um problema crônico com suas imagens… em vários posts
Opa, obrigado pelo toque! As imagens não carregam? É na versão desktop ou mobile?