Frequentemente sou defrontado com uma cifra assustadora: 3,5 milhões de pessoas mortas pela seca de 79-83. Sempre quis saber de onde vinha. Pesquisei e me deparei com um emaranhado que nem a mídia e tampouco a academia conseguiu desenrolar – e, acreditem, eu consegui.🧵 ⬇️
1. Muitas publicações não fazem menção específica a uma fonte, incluindo aí algumas de peso, como a Revista do Desenvolvimento do Ipea e o Ceped da UFSC.
Parecia um beco sem saída.
2. … há outras publicações que mencionam uma fonte: a SUDENE.
E uma linha do tempo publicada pela UERJ em jun/2013 que referencia a SUDENE parece ser a fonte do texto que aparece em muitas publicações posteriores, a maioria sem dar crédito.
⬇️ e-publicacoes.uerj.br/polemica/artic…
3. Por mais que eu tenha feito buscas exaustivas sobre qual seria esta publicação da SUDENE e respectiva data, não a encontrei. Mas há um grupo de publicações que menciona outra fonte: o DNOCS.
OK, consegui avançar um pouco…
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4. Ocorre que esta publicação de 2009 (100 Anos de DNOCS), de A.S. Pomponet, faz menção ao livro Vida e Morte no Sertão, de Marco Antônio Villa (sim, o famoso Villa), publicado em 2000. Assim, referências ao artigo sem mencionar “apud Villa (2000)” estão conceitualmente incompletas.
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5. E aí chegamos ao livro do Villa. Para quem conheceu o personagem na JP que implicava com a agenda do então prefeito Haddad, é outra pessoa: objetivo, imparcial e crítico contundente com as omissões do governo do período 79-83. Ele fez uma compilação metódica e cuidadosa de dados disponíveis para o período.
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6. Ele cita 4 números de mortos para o período 79-83:
– 700 mil (referenciando o livro Genocídio no Nordeste, de 86)
– 1 milhão (idem)
– 3,5 milhões (idem)
– 100 mil (estimativa própria em cima das estimativas de óbitos diários dos governadores na época).
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7. Nota: mais adiante, Villa faz uma estimativa do total de mortos pela seca no Nordeste, mas no período acumulado de 158 anos: 3 milhões de pessoas.
(notem que esta estimativa num intervalo tão grande automaticamente invalida os supostos 3,5 milhões de 79-83)
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8. Finalmente: o livro Genocídio do Nordeste, publicado em 1986, ao qual Villa se refere.
Mas atenção ao palavreado:
– “TALVEZ mais de um milhão”
– “FALAVA-SE de 3,5 milhões de mortos”
Ou seja, não são estimativas, mas sim uma introdução ao que o livro pretendia fazer: um levantamento quantitativo dos óbitos no período (algo que não fora feito antes).
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9. E é assim que o livro chega à estimativa de 700 mil: uma extrapolação da mortalidade obtida nos municípios pesquisados a toda a população afetada (28 milhões).
Fica claro que os 3,5 milhões citados no começo do texto tinham papel anedótico.
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10. Mas continua a dúvida: de onde veio, então, a cifra de 3,5 milhões? Seria apenas um erro na interpretação de texto de um livro que jamais afirmara isto?
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11. Eis que descobri a fonte primária – e me parece ninguém percebeu e/ou citou antes: os 3,5 milhões vieram de uma declaração do Cardeal Aloísio Lorscheider no início de 1984, baseado em informações das dioceses.
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12. Em 1989, o relatório de uma CPI que corria no Senado corrobora que a origem deste número era a igreja. Um ponto adicional – que, acredito eu, ajudou a formar o mito que estes seriam números oficiais – é que os números não foram contestados oficialmente.
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13. Assim, não foi a Sudene nem nenhum órgão oficial que estimou 3,5 milhões de mortos, mas sim um Cardeal da Igreja Católica. Não há registros da metodologia e tampouco há uma publicação formal – tudo indica que foi uma simples declaração verbal.
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14. O incrível é que existem montanhas de publicações acadêmicas que citam o número de mortos citando fontes secundárias e nenhuma deles se deu ao trabalho de chegar à fonte primária.
E vale dizer: não é que o Cardeal tenha inventado um número, possivelmente as dioceses estimaram mesmo – mas num contexto informal, sem rigor científico, portanto inútil para o meio acadêmico.
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15. Adendo: me chamou a atenção as referências bibliográficas freestyle em alguns textos, por exemplo este artigo de Xico Sá no Guia do Estudante de 2005 – no qual ele usa o livro Genocídio do Nordeste para embasar um número que o livro não embasa.
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16. Já o Opera Mundi corretamente cita os 700 mil estimados no livro de 86, mas também o apócrifo e misterioso “entidades da sociedade civil” como fonte de 3,5 milhões.
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17. A já citada matéria de Pedro Henrique Barreto, do IPEA, menciona as tais “entidades da sociedade civil” para embasar os 3,5 milhões – sem detalhar a fonte, algo incompreensível para um número tão bombástico.⬇️
18. O Ceped da UFSC aparentemente se baseou na linha do tempo publicada pela UERJ em 2013, mas a referência linkada é um blog (!) (hoje offline) com notícias antigas, das quais nenhuma embasa o número.
Não é assim que se faz.
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19. Este estudo aqui corretamente mencionou tanto o artigo de 2009 quanto o livro de 2000 como fontes, mas falhou ao não citar a fonte na qual Villa se baseou (o livro de 86) – e, portanto, ignora que os 3,5 milhões não foram uma estimativa de lá.
⬇️ periodicos.ufam.edu.br/index.php/revi…
20. Já este outro estudo usa o livro do Villa para cravar o número de mortos em 3,5 milhões, algo que o livro não faz.
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21. Este aqui foi mais longe: misturou tudo e colocou a UNESCO como fonte dos 3,5 milhões.
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22. Resumindo, eis a linha do tempo:
- 1984: Dom Aloísio Lorscheider fala em 3,5 milhões de mortos
- 1986: O livro Genocídio do Nordeste estima 700 mil mortos
- 2000: Villa menciona a estimativa de 700 mil do livro Genocídio no Nordeste – e faz uma própria estimativa (mín. 100 mil mortos)
- 2005: Xico Sá publica um artigo no Guia do Estudante afirmando que o livro Genocídio do Nordeste contara 3,5 milhões de mortos
- 2009: André Pomponet publica um artigo relatando os 100 anos do DNOCS e cita os mesmos números contidos no livro do Villa
- 2009: O repórter Pedro Barreto publica um artigo no site do IPEA afirmando que foram 3,5 milhões de mortos segundo dados oficiais
- 2013: uma revista eletrônica da UERJ publica um artigo com uma linha do tempo citando a SUDENE como fonte dos 3,5 milhões
23. Em suma, o que ocorreu: um dado anedótico foi tomado como confiável por pura e simples falha nas citações e, na sequência, muitas outras publicações agora citam este número de forma circular.
Adendo: esta matéria da CPT da Bahia é bizarra, considerando que o livro Genocídio do Nordeste teve participação da própria CPT e não embasa os 3,5 milhões.
ADENDO 2: nada disto diminui a tragédia que ocorreu no Nordeste naqueles anos – é apenas uma tentativa de trazer mais racionalidade ao debate público via uso de referências confiáveis/rastreáveis.